Vômito
quinta-feira, dezembro 29
Chovia e era uma chuva forte, daquelas capazes de lavar a imundice das ruas por um breve instante, frear a agitação costumeira de pernas e pneus pelo centro da cidade. Guarda-chuvas iam e vinham, de vez em quando até um jornal ou uma maleta sobre a cabeça. As poças de água abafavam o som dos sapatos, molhavam os abanhados desavisados das calças, desafiavam a paciência de quem por elas passava. Era oito da manhã e alguém andava mais rápido do que as condições permitiam. Andava rápido, quase correndo, esbarrando em quem ousasse caminhar à sua frente, homem ou mulher ou um vendedor de frutas idoso e inofensivo, isso não importava naquele momento. Nada importava. Nada existia mais porque nada mais fazia sentido. Ninguém era confiável, ninguém era bom, ninguém merecia compaixão. Aquilo já havia acontecido antes e ela prometera que da próxima vez, se houvesse uma outra vez, haveria de ser diferente, ela faria diferente, agiria diferente, agiria como outra pessoa, alguém mais sensato. Tropeçou, desequilibrou-se, caiu de joelhos na calçada.
Mulher, vinte e seis, solteira à três curtos minutos, noiva durante três longos anos. Sorria ao recordar os momentos bons, sentia raiva ao perceber no que se haviam transformado: lembranças fabricadas embrulhadas num papel bonito de mentiras e dissimulação. Só de pensar que aquele sorriso, o seu sorriso, aquele que surgia apenas à sua presença, na verdade vinha por causa de outra... Aahh... Não só partia seu coração, como o esmagava até virar pó e se dissipar; até não existir. Chorava. Mas chorava pois sabia que no fundo fora também culpada. Ela sabia, sempre soube. Aquilo que seus olhos não viam, seu coração podia sim sentir. Não sabia como nem por quê, apenas sabia, como se um fantasma sussurrasse em seus ouvidos tudo aquilo que ela insistia em não enxergar. Era inútil fingir, negar. Sabia que quando as luzes se apagavam não era ela na cama. Não era ela a quem ele suspirava amores, gemidos abafados de desejo. Podia ser seu corpo, mas para ele era outra alma. A alma dela, a outra. Fragmentos de um passado que ele se recusava esquecer, que, quando as luzes não mais refletiam a verdade, deixava-se possuir pela ilusão de suas falsas lembranças. Mas ela sabia; que não era dela, que não era ela. Por isso chorava. Pela ignorância que fora sua melhor amiga todos esses anos. Por todo o teatro que fora sua vida. E que grande papel interpretara, que magnífica atuação. Sorriu, um sorriso inexpressivo.
Chovia. Chuva forte. Chovia também em seus olhos, mas ninguém percebia. Tudo se misturava numa chuva só. Ninguém se importava. Seu coração doía, apertava, já não conseguia respirar. Ninguém via. Vomitou, como se pudesse botar para fora à força tudo aquilo que não suportava mais guardar para si. Enfiou o dedo na goela, o mais fundo que podia, quem sabe para vomitar seu coração, as lembranças dele que grudavam em seu cérebro como parasitas famintos, todo o seu gosto, que ficara amargo, ácido. Chovia e a chuva saturou o vômito. E ninguém notou seus resquícios na sola do sapato. Ninguém sequer notou.
Chovia. Chuva forte. Chovia também em seus olhos, mas ninguém percebia. Tudo se misturava numa chuva só. Ninguém se importava. Seu coração doía, apertava, já não conseguia respirar. Ninguém via. Vomitou, como se pudesse botar para fora à força tudo aquilo que não suportava mais guardar para si. Enfiou o dedo na goela, o mais fundo que podia, quem sabe para vomitar seu coração, as lembranças dele que grudavam em seu cérebro como parasitas famintos, todo o seu gosto, que ficara amargo, ácido. Chovia e a chuva saturou o vômito. E ninguém notou seus resquícios na sola do sapato. Ninguém sequer notou.
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