Apto. 202
sexta-feira, março 28
Já era manhã, mas não se podia saber muito bem dentro daquele quarto escuro e abafado. Os raios de sol travavam uma batalha quase mortal com as persianas a fim de tomar um espaço naquele cubículo fechado. Parecia até não existir vida dentro do 202, não fossem os pedidos periódicos do serviço de quarto. Alguém morava ali, era claro. Mas não se via ninguém sair ou entrar fazia dias e os vizinhos já começavam a imaginar todo o tipo de teoria macabra do que poderia ter acontecido com o hospedeiro daquele apartamento. Que espécie de pessoa habitava aquele lugar... Seria homem, mulher? Certamente na faixa dos 25, quase 30. Talvez ela fosse algum foragido da polícia ou quem sabe um espião disfarçado tipo os que a gente vê nos filmes de ação hollywoodianos. Pior, e se fosse como algum daqueles serial killers que aparecem na tv? Bem, que não seja do tipo que mata vizinhos curiosos. Já era quase meio-dia, os pássaros já paravam de cantar, o ritmo dos carros se intensificava - era a hora de saída do trabalho para o esperado almoço. As persianas continuavam fechadas, mas o sol não desistia. Alguém se mexia na cama, o corpo mole, a sensação de estar em lugar algum, nem no sonho nem na realidade. Aquele estado de limbo; a sonolência. Próximo à cama, podia-se ver um cinzeiro transbordar, com ainda um cigarro meio gasto se sustentando em suas extremidades. Perto dele, revistas velhas marcadas pelo tempo e um porta-retrato com um formato bobo, meio vintage. Uma foto. O corpo inerte que estava na cama se mexeu novamente, virou-se e através de uma visão embaçada, ainda remelada, mirou a fotografia. Era um casal, ou pelo menos era o que parecia. Também pareciam felizes, o braço do homem confortavelmente repousava sobre o ombro da mulher, como num ato de proteção, de afeto; como se ela fosse algo tão precioso que seria loucura soltar. A mulher, por sua vez, se deixava embalar pelo corpo do homem e deitava delicadamente a cabeça em seu peitoral. O corpo na cama se remoeu, algo o incomodava. A vista embaçada do sono tornou-se então embaçada por lágrimas, centenas delas, seguindo seu curso natural entre o fundo dos olhos e o contorno do rosto. Não era a primeira vez que elas apareciam assim tão subitamente, mas logo seria a última... Já era noite, os pássaros já haviam ido se deitar e a cidade dormia, tranquila, quase como uma criança. A lua tomava o lugar do sol; as persianas haviam ganho a batalha. O corpo continuava deitado na cama, mas já não mexia.
Nada mais se mexeria no apartamento 202.
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